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‘Reforma tributária traz coisas que não existem em nenhum lugar do mundo’
Ana Cláudia também preside desde o ano passado o WIN (Women of IFA Network) – IFA é a sigla da International Fiscal Association – e ainda lidera a seção brasileira do Advising Families Across Generations (Step), organização com mais de 21 mil membros (advogados, contadores, administradores e outros profissionais) que auxilia famílias a planejar o futuro, o mundo do wealth management.
Nesta entrevista à DC NEWS, Ana Cláudia Utumi faz um diagnóstico bastante realista da Reforma Tributária brasileira e traz duas notícias. Uma boa: “A reforma será aprovada este ano”. Uma má: “Há coisas nela que nenhum país do mundo adotou”. A seguir, trechos de sua entrevista.
DC NEWS – Você participou no fim de setembro de mais uma audiência pública da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado sobre a reforma tributária. Há alguma boa notícia?
Ana Cláudia Utumi – O texto não está pronto para a votação. Então, de fato vai precisar de muito mais trabalho do relator, o senador Eduardo Braga (MDB-AM). Hoje já são mais de 1,3 mil emendas. Mesmo assim é possível que o relatório não demore muito. A ideia do Senado é votar o Projeto de Lei Complementar (PLP) 68 ainda este ano. As alterações feitas no Senado ainda terão de voltar para a Câmara, mas deve sair este ano.
DCN – A Emenda Constitucional (EC) 132 já estabeleceu quem pode ser beneficiado. Por que ainda há tanta discussão da Lei Complementar?
Ana Cláudia – O Senado acabou tendo um papel importante na determinação de quem estará incluído. Isso acontece porque a Lei Complementar é que, de fato, implementa a Reforma Tributária. A Constituição não cria atributos, ela atribui competências. E é a Lei Complementar que de fato cria a tributação. O segundo ponto importante é que a Constituição traz os setores, mas não traz especificamente os produtos.
DCN – Como?
Ana Cláudia – Por exemplo. O setor de aparelhos médicos. Dentro dele eu posso ter absolutamente tudo. Ter aparelhos para deficiência, e posso ter aparelhos para tratamentos estéticos. Então, quem vai trazer quais são os aparelhos médicos que vão merecer o incentivo é justamente a Lei Complementar.
DCN – Mas a Câmara já discutiu isso, não?
Ana Cláudia – Já, em parte, mas continua no Senado. E agora é o momento para, vamos dizer, ‘se eu não consegui na Câmara dos Deputados eu preciso conseguir no Senado’. E se consegui na Câmara dos Deputados preciso ter certeza de que o Senado não vai retirar.
DCN – Uma briga sem fim…
Ana Cláudia – Um cabo de guerra. É aquela história do cobertor curto. Como o cobertor é curto, não dá para dar benefício a todo mundo. Então, temos alguns setores que vão ter redução e os que não vão ter, vão ter aumento.
DCN – Um desses nós, especialmente para pequenos e médios empreendedores, é o split payment. Como você avalia a solução proposta na reforma?
Ana Cláudia – O PLP 68 fala o seguinte: se você comprar mercadoria, você paga IBS e CBS na compra. Se vai revender essa mercadoria, enquanto o seu fornecedor não pagar o IBS e o CBS para os cofres públicos, você como comprador não tem direito a crédito. Dessa forma, o que o PLP está fazendo? Está tirando dos estados e dos municípios e da União o problema da inadimplência tributária. Porque se eu sou sua fornecedora e não pago o IBS e CBS por qualquer motivo, você que é o comprador fica prejudicado e acaba não conseguindo tomar o crédito.
DCN – Terceirizou a inadimplência, ou mesmo a sonegação, pro setor privado?
Ana Cláudia – Sim. Se você comprou de mim, por exemplo, algo por R$ 100 e tem 30% de IBS e CBS e vai vender a um terceiro por R$ 300, teria de pagar R$ 90 de IBS e CBS. Na hora de vender por R$ 300 você vai pagar os R$ 90 mais os R$ 30 do fornecedor que não recolheu aos cofres públicos.
DCN – E o que o governo diz sobre isso?
Ana Cláudia – A União, os estados e municípios estão falando nesse PLP algo como, ‘olha, como a tecnologia bancária no Brasil é muito forte, vamos fazer o seguinte: quando a empresa compradora for passar um Pix para a empresa fornecedora, em vez de pagar o valor cheio – no caso, R$ 100 – vai passar um Pix de R$ 70’. Esses R$ 30 de diferença são o split payment. Nada mais é do que uma retenção.
DCN – E quem cuidará dessa intermediação?
Ana Cláudia – Qualquer instituição financeira. E aí é difícil a gente pensar numa forma de eu pagar o meu fornecedor hoje em dia que não envolva o sistema eletrônico. Qualquer um que for pagar o fornecedor verá essa retenção. E quando eu falo qualquer um, é qualquer um mesmo. Se eu, pessoa física, vou numa loja no shopping, faço uma compra e pago no cartão de crédito, o sistema do cartão de crédito vai olhar que eu comprei um vestido na loja X, paguei R$ 200, tinha R$ 60 de IBS e CBS, então daquele meu débito de cartão de crédito saem os R$ 200 da minha conta e em vez de chegar R$ 200 para a loja vão chegar R$ 140, porque R$ 60 vão ficar no caminho.
DCN – Um baita problema pro lojista, não? Até porque ele também tem créditos tributários
Ana Cláudia – Sim. Digamos que o lojista vai ter retido R$ 60, mas tem na contabilidade R$ 40 de crédito. Os governos juram que o sistema do split payment vai conseguir ler esse crédito. Então, em vez de reter R$ 60 na hora, vão reter apenas R$ 20. Os R$ 60 [da tributação] menos os R$ 40 [de crédito].
DCN – Em que lugar do planeta há algo assim?
Ana Cláudia – Em nenhum.
DCN – Nenhum?
Ana Cláudia – Nenhum. Na verdade, uma das críticas que se tem ao split payment é que em outros países essa retenção de imposto só é feita naqueles casos em que se tem uma pulverização muito grande e uma chance de sonegação muito grande. Vou dar um exemplo: as plataformas de compras. Às vezes, na mesma plataforma você tem 100 mil fornecedores. O que é mais fácil para o Fisco? Fiscalizar 100 mil lojistas ou fiscalizar uma plataforma? Fora do Brasil é comum usar o split payment em plataformas eletrônicas. Ou então fazer com que a plataforma eletrônica forneça informações para o Fisco. Mas esse sistema de fazer a retenção no intermediário financeiro e retenção geral não existe.
DCN – Há outros problemas além desse?
Ana Cláudia – Há. Outro ponto é o seguinte: digamos que eu tenha R$ 60 de débito na tributação, mas tenha acumulado R$ 100 de crédito de várias coisas que eu comprei, de vários fornecedores. Eu vou ao sistema do split payment e vou gastar todos os meus créditos antes de começar a fazer retenção? Ou ele vai alocar o meu crédito por produto, fazer algum tipo de alocação proporcional?
DCN – Essa centralização não vai afetar também estados e municípios?
Ana Cláudia – Vai. Hoje, quando o estado de São Paulo arrecada o ICMS, ele arrecada tanto o que foi débito para o vendedor quanto o ICMS que foi crédito para alguém. Se no mês houve um recolhimento de ICMS de R$ 100 milhões, dos quais R$ 40 milhões foram registrados como crédito para as empresas, hoje entram no caixa do estado de São Paulo R$ 100 milhões. Com o sistema proposto sob o Comitê Gestor vão entrar pro estado de São Paulo R$ 60 milhões. Os outros R$ 40 milhões vão ficar no caixa do Comitê Gestor, esperando o momento em que os contribuintes que tiverem direito a esses R$ 40 milhões de créditos venham usar o crédito ou pedir o dinheiro de volta.
DCN – Qual a probabilidade de isso dar certo?
Ana Cláudia – Sou um tanto cética em relação a esse sistema de retenção no Comitê Gestor.
DCN – Por quê?
Ana Cláudia – Porque esse dinheiro do crédito de imposto é usado no orçamento dos estados. E do dia para a noite, ao final do período de transição, os estados não vão mais poder considerar esse dinheiro. Aí, na hora em que começar a faltar dinheiro para pagar funcionalismo, para fazer investimentos já empenhados, para pagar a merenda das escolas e tudo o mais, a chance é grande de esses estados entrarem no Supremo Tribunal Federal para falar, ‘olha, tem um monte de dinheiro ali no Comitê Gestor e eu não tenho dinheiro para pagar o 13º do funcionalismo’. Qual a chance de o Supremo falar, ‘não, você tem de se virar’? Ou será que o Supremo vai dizer, ‘pois não, realmente o interesse público do gasto estatal é mais importante do que o interesse dos particulares que têm direito à restituição e, portanto, estado de São Paulo, está aqui o seu dinheiro’?
DCN – Tempestade perfeita à vista?
Ana Cláudia – Eu não duvido da implementação do sistema, ou de que o Comitê Gestor tenha todas as condições para controlar. Ok. Mas sobre esse dinheiro ficar sentado ali no caixa do Comitê Gestor é, para mim, um ponto de interrogação. Por isso considero que ninguém consegue prometer, escrever em pedra, que a restituição vai ser rápida mesmo.
DCN – Mas aí o governo vai trabalhar – eu vou usar o verbo ‘trabalhar’ e quase estou usando ‘atrapalhar’ – o fluxo de caixa tanto do privado quanto do público. Vai fazer uma ingerência num dinheiro que hoje as empresas, ou cidades e estados, usam para fazer ganho financeiro, porque o ganho operacional não está acontecendo.
Ana Cláudia – Sim.
DCN – Quando a discussão da Reforma Tributária nasceu, eu não ouvi uma voz contrária. Agora, ela nem está pronta e só ouço críticas. Ela nascerá destruída?
Ana Cláudia – Era necessária. Pode não ser perfeita, mas vai ser melhor do que temos.
DCN – O quão desconfigurada ela está?
Ana Cláudia – Bom, em relação à melhoria do ambiente de negócios, de fato haverá. Não vamos ter 27 legislações estaduais e quase 5,8 mil legislações municipais. Só que não dá para dizer que o novo sistema é simples. Ele não é. Ele é bastante complexo. A gente já tem mais de 600 artigos em dois PLPs. É uma complexidade gigantesca. E está longe de ser o sistema que realmente aproxima o Brasil dos outros países.
DCN – Por quê?
Ana Cláudia – Não é o imposto sobre valor agregado.
DCN – O que é?
Ana Cláudia – É um imposto não cumulativo, que não arrecada tudo no final da cadeia como fazem os americanos no sales tax. Nos EUA, quando vou no caixa descubro o quanto de imposto tem lá e pago ali, que é o sales tax. No caso brasileiro, eu vou pagando a cada etapa. Então, é um sistema não cumulativo, não é um sistema de imposto sobre valor agregado. Esse é o primeiro ponto. O segundo é que se trata de um sistema não cumulativo com uma exigência que não existe em lugar nenhum do mundo.
DCN – Qual?
Ana Cláudia – A exigência de que o imposto tenha sido recolhido aos cofres públicos para dar crédito.
DCN – Outra jabuticaba?
Ana Cláudia – Sim, porque estou literalmente passando a função da gestão da inadimplência para o próximo da cadeia. O governo está lavando as mãos quanto à inadimplência. Isso não existe em nenhum país do mundo, não tem nenhum país que coloque dessa maneira. E essa questão do split payment generalizado também não encontra paralelo no mundo.
DCN – Sobra algo de bom?
Ana Cláudia – Tem as suas vantagens, sim. Não dá para dizer que é terra arrasada, de jeito nenhum. Tem a vantagem de poder tomar mais créditos do que eu tomo hoje. Porque hoje tem regra de crédito para PIS-Cofins, outra regra de crédito para ICMS, outra regra de crédito para IPI e dentro do ICMS eu ainda tenho 27 variações das regras. Então, claro que melhora. Há pelo menos uma não-cumulatividade melhor. De qualquer maneira não é uma não-cumulatividade que seja perfeita, porque sai dinheiro do meu caixa e não necessariamente eu tenho crédito de imposto.
DCN – Essa ingerência no fluxo de caixa está sendo bem avaliada pelas empresas e governos estaduais e municipais?
Ana Cláudia – Esse ponto do caixa, do fluxo de caixa, eu acho muito importante e poucas empresas estão prestando atenção. Se a gente pegar o caso das empresas de varejo, muitas vezes não é nem questão de trabalhar o dinheiro do Fisco no banco, porque é vender no dia 10 de um mês e recolher o imposto no dia 5 do mês seguinte. E existe muito caso de empresa de varejo que tem as margens muito pequenas. E um giro de caixa muito intenso. Às vezes ela tem um volume de movimentação de caixa muito grande para uma lucratividade proporcionalmente pequena. Isso pode impactar. Porque o lojista que me vendeu o vestido por R$ 200 não vai receber R$ 200. Vai receber R$ 140. Ou um pouco mais se o sistema de crédito funcionar. Vai impactar sim o caixa.
DCN – Outra dor sem solução à vista é que a reforma fragiliza o Simples Nacional.
Ana Cláudia – Se eu não migrar do Simples, vou ter em primeiro lugar um aumento de custo. E em segundo, vou custar mais caro para o meu cliente. Porque como é um sistema não cumulativo, se eu comprei de uma empresa no Simples por R$ 100, e dentro da alíquota do Simples tem lá só R$ 5 de crédito, é R$ 5 que eu vou tomar. Se eu comprei de uma empresa fora do Simples pelos mesmos R$ 100, eu vou tomar um crédito, nesse exemplo, de R$ 30 e não de R$ 5. Então, para mim, enquanto comprador empresarial, vai valer muito mais a pena ter um fornecedor ‘normal’ do que um fornecedor dentro do Simples.
DCN – É quase a morte do Simples?
Ana Cláudia – O Simples vai perder competitividade no custo, porque vai pagar mais caro, porque tem lá embutido o IBS-CBS que ele não toma o crédito. E vai paralelamente perder competitividade perante o cliente, porque o cliente só vai poder tomar crédito do caraminguá de IBS-CBS que estiver lá. O discurso do governo antes de aprovar a própria Emenda Constitucional foi dizer, ‘não, mas peraí: você fica no Simples, só que para IBS-CBS você vai para o sistema ‘normal’.
DCN – Resolve?
Ana Cláudia – Aí, o que vai acontecer? A alíquota que eu vou pagar no Simples diminui, por exemplo, 5%. Só que aumenta o recolhimento do IBS-CBS em 30%. Tá bom, é 30 menos os créditos. Mais do 30 para chegar no 5, com créditos, haja crédito. E estou falando 30% porque o governo já falou em no mínimo 28%. Será que o meu negócio vai ser viável cobrando 30% de imposto? E tem mais um ponto.
DCN – Qual?
Ana Cláudia – Hoje em dia, se eu for fornecer para uma empresa maior, e se pegar os grandes varejistas vários têm pequenos fornecedores, muitas vezes o negociador do preço daquela compra não é o cara que entende de tributário. Então, eu vou chegar para o varejista e vou falar, ‘olha, eu estou aumentando o meu preço, mas veja bem, você vai poder tomar o crédito de tudo.’ Será que o cara de compras vai estar se importando ou vai apenas decidir pensando no caixa desembolsado nas compras? Será que ele vai falar, ‘nossa, coitadinho, realmente, puxa, vou fazer a caridade de desembolsar mais para o meu fornecedor.’
DCN – Uma situação de extrema gravidade.
Ana Cláudia – É uma situação que preocupa muito. Por isso digo para as pessoas que não é uma questão de odiar ou amar a Reforma Tributária, mas sim uma questão de olhar o que está acontecendo e ainda tentar mudar antes da aprovação final. Porque não adianta a gente demonizar e ver aprovada do mesmo jeito. A gente tem de agir para tentar consertar ou reduzir danos.
DCN – E a discussão tem sido nesse nível de detalhe?
Ana Cláudia – Infelizmente, uma boa parte dos congressistas não lê no detalhe, não conhece o texto no detalhe. Mesmo o PLP-68, que foi aprovado na Câmara dos Deputados, teve alterações feitas menos de dez minutos antes da votação.
Fonte: Diário do Comércio SP